Guerre de Louis-Ferdinand Céline

Guerra, o manuscrito inédito de Céline

Enquanto a transcrição de Guerra, romance inédito, acaba de ser publicada pela editora Gallimard, a SP Edições oferece uma reprodução do manuscrito em questão, sob a égide dos herdeiros de Céline, François Gibault e Véronique Chovin.

Os manuscritos perdidos de Louis-Ferdinand Céline

O reaparecimento, ainda envolto em mistério, do manuscrito de Viagem ao fim da noite em 2001, após 60 anos de incertezas sobre seu paradeiro, foi um evento retumbante. Colocado à venda na casa Drouot pelo livreiro Pierre Berès, o manuscrito foi adquirido pela Biblioteca Nacional da França por pouco mais de 12 milhões de francos.

Mas os especialistas sabiam, havia muito tempo, que outros manuscritos poderiam ressurgir, pois, durante sua vida, Céline havia afirmado que milhares de páginas – quase seis mil folhas, algumas reunidas com prendedores de roupa – haviam sido roubadas de seu apartamento em Montmartre durante a Libertação da França, enquanto ele estava a caminho da Alemanha com sua esposa Lucette e seu gato Bébert. Esse roubo, outrora difícil de atestar, foi objeto de repetidas lamentações por parte do escritor durante os 15 anos após a guerra, e até sua morte: “Não me deixaram nada, nem um lenço, nem uma cadeira, nem um manuscrito”¹.

Romances inéditos e capítulos perdidos

Incluídas nesse tesouro reencontrado estão muitas joias: o manuscrito de Morte a crédito; capítulos perdidos de Casse-pipe [Linha de frente]; La Volonté du roi Krogold [A vontade do rei Krogold], um conto dito de fadas, e, em texto datilografado, La Vieille dégoûtante [A velha repugnante], um conto juvenil; ou ainda dois romances inéditos, Guerra e Londres.

Uma publicação excepcional

Composto por 219 páginas, o documento que apresentamos ao leitor é o primeiro rascunho do romance Guerra. Ele é formado por seis partes que se iniciam com uma página enigmática², encimada pelo número 10 escrito a lápis e coberta com estas palavras marcantes: “Não é bem assim. Devo ainda ter ficado lá durante uma parte da noite seguinte.”

As páginas seguintes – dotadas de numeração regular – apresentam uma escrita confiante mas por vezes difícil de ler, feita a tinta, com correções e rasuras feitas a lápis. Uma das páginas é o verso de um atestado médico em branco emitido pelo município de Clichy. Algumas palavras em inglês, “What about your health”, e o endereço de Elizabeth Craig³ em Los Angeles aparecem após o fólio 18 da quarta parte.

Essas pistas sugerem que Céline escreveu o texto em 1934, dois anos após a publicação de Viagem ao fim da noite. Guerra não é, portanto, o capítulo que falta em outra obra, mas sim um projeto em si mesmo, em que os temas favoritos do escritor são evocados com a verve poética e cruel que conhecemos: vida, morte, sexualidade e guerra.

Ferdinand, o duplo literário de Céline

Guerra coloca em cena Ferdinand, o personagem principal, ferido no front. É importante lembrar que Céline, alistado desde 1912 ao 12º regimento de cavalaria pesada, em Rambouillet, se ofereceu para uma perigosa missão durante a qual foi ferido no braço direito em 27 de outubro de 1914, em Poelcappelle, tendo sido depois transferido e operado em Hazebrouck. Seu duplo literário é, por sua vez, liderado por ingleses em Ypres, na Bélgica. Ele assiste, em um hospital do interior, aos jogos eróticos de uma enfermeira, Mademoiselle Lespinasse, com quem terá um caso. Ferdinand em seguida faz amizade com um cafetão e uma prostituta, Angèle. Acaba deixando a França de barco, rumo a Londres, como fez Céline em 1915.

Uma obra a ser redescoberta, sob novos lampejos

Louis-Ferdinand Céline, cujo nome verdadeiro era Louis-Ferdinand Destouches, nasceu em Courbevoie, na França, em 27 de maio de 1894. Médico e escritor, tornou-se conhecido do público graças a um estilo revolucionário.

Céline cresceu em uma família modesta. Marcado pela infância, o escritor mais tarde se inspiraria nela para escrever Morte a crédito, seu segundo romance. Antes de ingressar no exército, em 1912, trabalhou fazendo diversos bicos. Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, seu regimento foi um dos primeiros a se juntar ao front. As experiências bélicas seriam fonte de pavor, mas sobretudo de inspiração, para o autor de Viagem ao fim da noite (1932), Casse-pipe (1949) e, agora, Guerra.

Apesar de ter obtido o prêmio Renaudot, sua recepção não era unânime. Sua imagem foi manchada pela redação de panfletos racistas e por seu engajamento ideológico durante a Ocupação. Com sua esposa Lucette, ele tomaria o caminho da Alemanha e depois da Dinamarca, após o desembarque inglês na Normandia. Em 1950, ele seria alvo de expurgo, mas obteria a anistia um ano depois mediante o uso do título de “grande inválido de guerra” desde 1914. Antes de morrer, o autor ainda publicaria uma trilogia composta pelas obras De castelo em castelo (1957), Norte (1960) e Rigodon (publicado postumamente, em 1969), em que é personagem e narrador.

A recente descoberta dos manuscritos de Céline, hoje peças essenciais do monumento celiniano, permite uma nova forma de compreensão da obra de um dos mais sulfurosos e brilhantes escritores franceses do século XX.

1. Ver De castelo em castelo (1957).

2. O paradeiro do início do romance, caso ele ainda exista, mantém-se desconhecido.

3. Primeiro grande amor de Céline, a quem ele havia dedicado Viagem ao fim da noite.

Descubra o manuscrito de Voyage au bout de la nuit

"Cinco anos de trabalho"... "Pão para um século inteiro de literatura"... Quando Louis-Ferdinand Céline se dirige a Gaston Gallimard em uma carta de abril de 1932, é nesses termos que ele apresenta a redação do manuscrito de Viagem ao fim da noite, seu primeiro romance, que será publicado pelas edições Denoël & Steele.

Viagem ao fim da noite :

Ver o manuscrito

Entrega gratuita

Para ir mais longe:

• David Alliot et François Gibault, D’un Céline l’autre. Bouquins (Paris, 2011).
• François Gibault, Céline. 1894-1932. Le Temps des espérances. Mercure de France (Paris, 1977).
• Louis-Ferdinand Céline, 1932-1944. Délires et persécutions. Mercure de France (Paris, 1985).
• Louis-Ferdinand Céline, Guerre. Gallimard (Paris, 2022).
• Louis-Ferdinand Céline, Voyage au bout de la nuit. Folio (Paris, 2014).
• Louis-Ferdinand Céline, Romans. Tomes I-IV. Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard (Paris, 1981, 1974, 1988, 1993)
• Louis-Ferdinand Céline, Lettres. Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard (Paris, 2009).
• Devenir Céline : Lettres inédites de Louis Destouches et de quelques autres (1912-1919). Sous la direction de Véronique Robert-Chovin. Gallimard (Paris, 2009).
• Véronique Robert-Chovin, Lucette Destouches, épouse Céline. Grasset (Paris, 2017).